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segunda-feira, junho 28, 2004

Entrevista com Carpinejar

Hoje é um dia muito especial para o Blues Curitibano. Acho que vocês imaginam por que. Fabrício Carpinejar, um dos maiores poetas da sua geração, concedeu essa entrevista para vocês. Sem mais delongas, vamos ao que interessa.

O que a poesia representa na sua vida? Você escreve sobre a sua vida, sobre o mundo, sobre os objetos à sua volta, sobre tudo isto, enfim, sobre o que a sua poética fala?

Minha poesia fala das distrações, das observações desatentas, dos ruídos que são uma espécie de voz. O poema é como um rádio entre duas estações. Parece apenas barulho, mas na verdade é uma outra sintonia. É necessário apenas se aproximar, duvidar que somos a realidade, somos a tentativa da realidade. Minha boca tem os músculos do ouvido.

O que você tem a dizer a respeito da sua forma poética? Ela estaria na contramão da forma com a qual a maioria dos escritores está escrevendo?

Há um autor francês, Gautier, que dizia que a forma poética não pode ser um sapato frouxo, que serve para todo pé. Não me preocupo com a forma, mas com o que a faz caminhar. O que faz a forma caminhar é o pulmão. Procuro o rigor da espontaneidade. Penso em meus poemas como conversas derradeiras, fluviais, feitas com a mesma coerência secreta de alguém que conta segredos. Poema se respira mais do que se lê. É oxigênio para o leitor não reduzir sua memória ao que viveu, porém ao que aconteceu em sua imaginação.

No seu último livro “cinco marias” senti em algumas das poesias ali apresentadas, uma forte influência do pensamento heideggeriano. Fale um pouco da influência que você tem da filosofia e o que ela representa na sua poesia e na sua vida.

Poema é feito para incomodar, inquietar, desacomodar lugares-comuns. É agilidade que só a comoção pode incutir. Eu fui criado para pensar o avesso, a filosofia do trivial. Morei grande parte de minha vida ao lado de um terreno baldio. Sabia pela visita das aves o que havia acontecido no local. Não adianta somente fazer enxergar a música no poema, cabe fazer pensar o desejo. Eu habito a linguagem como quem não aprendeu a falar. Minha ignorância é abençoada. Duvido até do meu nascimento.

Qual sua opinião sobre a literatura feita hoje no Brasil?

O Brasil tem que se salvar do Brasil. Não se preocupar em produzir uma literatura brasileira, mas fazer literatura apenas, para ser lida em qualquer idioma, em qualquer tempo.

Você diariamente escreve no blog que há no seu site. Gostaria que você falasse a respeito desta forma de apresentação de textos. Como é escrever no blog e como é escrever para uma publicação editorial? Para você, qual é a importância dos comentários que são feitos no seu blog?

Eu escrevo no blog mais para ler o leitor do que a mim mesmo (risos). Acho que há toda uma narrativa feita no espaço dos comentários, mostrando que não há recepção passiva. Toda palavra já é intervenção, interferência, fome. Utilizo aquele espaço para não o utilizar. Não é um fim, mas um destino. Apresento crônicas, poemas em prosa, confundo o que vi e imaginei para não me aposentar em juízos. Há ali várias séries: minha infância não atravessa a rua sozinha ou o homem não é o mesmo, mesmo que se repita. A internet permite o convívio, o medo alegre do desconhecido.

O que é uma boa poesia, na sua ótica?

Boa poesia é aquele texto que a gente nem repara que foi escrito, parece que apenas pensamos em voz alta. É conciliar imagem, música e idéias. Quanto mais invisível o poeta, melhor o poema.

No seu blog há um texto a respeito de Curitiba. Como um curitibano chato que sou, gostaria que você falasse a sua opinião sobre a cidade e (não poderia perder a oportunidade) sobre Paulo Leminski.

Leminski é da mesma linha de um Quintana: o poeta que não se leva a sério, porque tem mais coisas para fazer. Ambos encontraram o encanto no desencanto. São autocríticos vaidosos. Adoram se destruir como um elogio. Sobre Curitiba, deixo um texto:

Um careca em Curitiba

Curitiba é cinza. Como um terno azul dobrado. Cidade que muda seu tempo de repente, ficando somente entre a neblina e o nublado. Curitiba é Jamil Snege, mas ele já tinha ido, com seu medo bem antigo de chuva. Não foi avaro, não deixou bilhete de suicida, mas uma estante que nos permite atravessar a velhice sem enganos. Jamil não viveu a velhice para criá-la. Morreu lutando, com sua predileção pelos pálidos, pelos cabides de roupas mal passadas, por aqueles que nasceram em desavença, por aqueles que têm uma única nota para atravessar a imensidão de um dia.

Dos dias da semana, Curitiba é domingo. As mulheres parecem não rir. Não é fácil furtar um riso. Encolhidas, fazem com que o outro seja insignificante perto delas. Elas acertam comigo: eu sou mesmo insignificante. Curitiba é uma cidade inventada para se correr, mas o engarrafamento não deixa. As ruas usam roupas de grávida, largas e diagonais. Os ônibus contam com preferência para abrir as artérias. Paga-se passagem no terminal. Não dá para passar debaixo na roleta ou descer por trás. Isso mata a infância sem querer. As pessoas esquadram o vazio, introvertidas. São funcionais, não perdem atenção com informações desnecessárias. Nada parece ser importante o suficiente para que elas possam sair de casa (ou de si mesmas). Ser caseiro em Curitiba é uma missão. Amigos se encontram se forçados por visita de família distante. Encomendar uma pizza é obrigatório como levar o cachorro para passear. Quem escolhe Curitiba nunca adere de paixão. Não vi nenhum adesivo como "Eu amo Curitiba" nos carros ou em lojas. É um amor discreto, platônico, que não se declara nem sob tortura. Curitibano só começa a ser valorizado se fizer sucesso fora. Morar em Curitiba é ficar a duas quadras das convicções. Não é possível se sentir inteiramente no seu território, nem fora dele. Cidade de autores, não de leitores. Ninguém vai parar um escritor e solicitar um autógrafo, ainda que seja Paulo Coelho. Residir em seus limites é exercitar a invisibilidade. Sinto atração pelas suas dificuldades de relacionamento, mas levaria mais do que minha literatura para investigá-la. A cidade é bonita e fosca quando se atravessa as sinaleiras. Equilibrada, ordenada em excesso, perfeita a ponto do caminhante pensar que ele é o erro. É doce, mas com licor dentro. O rio Belém espia com seus obituários e velhos conhecidos, pouco compreendendo o que aconteceu. Passa receoso de incomodar e reprime suas histórias. Curitiba é uma cidade além de si. Os moradores esnobam obediência ecológica. Não pisam na grama e nas certezas. De acordo com Cristovão Tezza, as obras em Curitiba foram feitas para caber num selinho: Jardim Botânico, Ópera do Arame, Museu Niemeyer. Lerner viciou a fórmula, envolvida em verde, água e estruturas metálicas e de vidro. O modelo é sempre igual, transposto de bairro. Japoneses e chineses aparecem das moitas para fotografar. Nunca encontrei tantos parques arborizados de nuvens. Poucas bicicletas, o hábito é fazer caminhadas e leves corridas. A casa de Dalton Trevisan é cinza como Curitiba. Fechada para dentro. Nunca abre as janelas. Ele mora numa esquina. As corruíras são correias de seus telhados. Anônimas como as pombas. E rápidas.

Agora, como de costume, você deverá fazer uma pergunta ao entrevistador.

Tua poesia é uma forma de agradecer “quem te fez menos feliz”?

Resposta: Minha poesia não agradece a ninguém. Não agradeço escrevendo, mas sim com os músculos do rosto quando estes espremem o que não precisa compor a minha felicidade. A poesia que atualmente escrevo é feita para amanhecer retinas. Isto, para mim, não é uma forma de agradecer alguém, mas sim agradecer o mundo por ele existir e não parar de existir. E existir significa desenhar por cima de um desenho. Quem vive sem poesia, perdeu de desenhar toda a paisagem que o papel esperava conter para não ser mais um. Quem me fez menos feliz, hoje tento não hospedar em mim. Pois não são os que me fizeram assim que querem roncar na minha lembrança, mas o próprio passado configurado em boca e verbo que tenta me encher até me explodir. Tento escrever a partir do que sou agora e não do que eu já fui um dia. Mesmo quando falo do passado, falo através do que sou no exato momento que escrevi. A minha poesia sou eu. Escrevo para mostrar o que sou predestinado a mostrar. Não faz muito tempo, costumava a escrever através das notas de rodapé do meu passado infeliz. Aquilo era para acalmar meu ego. Destilar os desafetos do passado é uma forma de se esconder. Acredito que hoje acontece tanta coisa na minha vida que merece ser assinada, que o meu passado triste perdeu o lugar na fila. Hoje, quando escrevo, penso demais nos leitores. Eu quero que as pessoas amanheçam ao lado da minha poesia. As pessoas nos reconhecem, Fabrício, como um dono reconhece o seu cachorro (há anos perdido na cidade). O nosso olhar está ali, assim como o nosso jeito de chorar. A minha poesia não agradece. A minha poesia obedece ao fluxo que o mundo impôs às pessoas que respeitam o existir de uma forma plena.


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