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sexta-feira, setembro 21, 2007

Medusa de Rayban na pele suja de São Paulo

Minha mão tremia na iminência de tocar a pele suja de São Paulo, com suas ruas tortas, viadutos esfomeados e respiração ofegante. Andei feito um louco de manhã, de tarde e de noite, a procura de mais um tipo de polimento para o meu CD. Entrei no ritmo de rebite que a cidade carrega a cada estação de metrô e fui tragado pelo pânico, às vezes. Visitei rádios, visitei prédios, acordei cedo. Ali, na praça Roosevelt, bebi alguns goles de cerveja, que há muito eu não bebia (acho que, mais precisamente, um mês), com figuras como o Picanha, o Ceccato, o Pinduca, o Marcelo Montenegro, depois de assistir a “Medusa de Rayban” do Marião. Voltei pra Curitiba com vontade de falar mais sobre a peça. Nem tanto sobre os shows ou sobre o lançamento. Já estava cansado daquilo; também se eu falasse sobre o show ou sobre o lançamento do livro, eu acabaria resumindo os dois eventos em algumas palavras do tipo “é, foi bom pra caralho” e não teria mais o que contar, já que é foda ter que discorrer alguma coisa sobre nós mesmos (muito embora eu faça isto com frequência com um prazer quase masoquista). Prefiro escrever um pouco sobre a “Medusa de Rayban”, um texto pirado que parece conversar de perto com o espectador sempre quando pode cuspindo exaustivamente uma saliva suja e ácida nos nossos olhos sorridentes.

“Medusa de Rayban” é escancaradamente escrachada (e isto me lembrou um pouco do livro “América” do Robert Crumb, com seu traço sujo e críticas radicais). Jack Daniels, o personagem principal da peça, manda tudo que ele encontra pela frente ir tomar no cu. Matador de aluguel, Jack é encarregado de matar o pai de um estranho rapaz, com modos afeminados, chamado Haroldo. A partir daí, tudo é mostrado com tintas fortes, numa espécie de expressionismo contemporâneo. Haroldo fica de quatro para o outro matador de aluguel (amigo de Jack, o Johnny Walker), o pai de Haroldo (que bebe durante toda a cena) aparece vestido de papai noel, um outro matador frustrado é enrolado por um diretor de teatro afetado. Tudo vai acontecendo de uma forma amontoada, no bom sentido que uma bagunça entre amigos possui. Eis que durante um diálogo o profético papai noel nos avisa: “o futuro é bunda”.

Apesar de engraçada, “Medusa de Rayban” possui uma melancolia desesperada em sua estrutura. Desde o solilóquio inicial de Jack, contando uma história bizarra sobre o seu pai (que perdeu todos os dedos por conta de uma mania de coçar o corpo), até a triste constatação de Johnny Walker que prefere não matar o “papai noel” justamente pelo fato deste ter entregado totalmente os pontos ao resumir a sua vida em “beber cerveja e assistir mtv”. “Medusa de Rayban” é engraçada, mas triste. Fiquei com a sensação de ter perdido alguma coisa, a depressão da chuva, o choro dos inocentes. A gente ri o tempo todo, tudo é meio escrachado, meio debochado. É a acidez queimando aos poucos a banalidade do mundo contemporâneo. É a voz da escória e das pessoas invisíveis falando mais alto. E onde fica a normalidade? Onde fica a família, com sua grama verde, com sua rotina azul? Acredito que a peça tenha alcançado o seu objetivo de demonstrar tanta vida latente para um futuro que já é bunda. São Paulo foi mais intensa naquele teatro – não consegui sair do ritmo que a cidade nos impõe. “Medusa de Rayban” é torta como as ruas paulistas e nos engole como os seus viadutos. Ali, pelo menos, a rotina não foi verde como a grama feliz de uma família “feliz”. São Paulo me deu acesso ao outro lado. Mês que vem eu volto pra garoa.

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