Roberto Alvim - O Teatro da Penumbra
A iluminação escassa e a ênfase no texto são as principais características de Roberto Alvim - um dos destaques da nova geração de encenadores
Por Gabriela Mellão
A descoberta do poder das palavras se deu quando o carioca Roberto Alvim, 36 anos, era uma criança de 8. Sozinho em casa numa tarde, aventurou-se na biblioteca de seus pais, onde encontrou o volume de capa preta com um título irresistível: Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe. Pela janela entreaberta podia ver o cemitério do outro lado da rua, mas a luz no quarto era crepuscular. O menino devorou o conto O Gato Preto, mas fraquejou em Berenice - história macabra de um homem obcecado pelos dentes da prima morta. Em pânico, correu para a rua, em busca de gente. "Pela força da literatura, daquelas palavras, num simples livro, o mundo inteiro ao meu redor ganhou novo significado", conta Alvim. À frente da companhia paulista Club Noir, ele vem explorando o palco como um espaço da escuridão, onde a palavra é a força ordenadora. É o caso de A Terrível Voz de Satã, espetáculo do inglês Gregory Motton cuja temporada será retomada em março, e de O Quarto, peça do irlandês Harold Pinter cuja montagem lhe rendeu o prêmio de melhor espetáculo no 5º Prêmio Bravo! Prime de Cultura. Três diretores dominaram a cena brasileira nos últimos trinta anos: Antunes Filho, José Celso Martinez Corrêa e Gerald Thomas. Ao lado de Antonio Araújo, encenador do Teatro da Vertigem, e Enrique Diaz, Roberto Alvim é um dos destaques da geração de encenadores que veio para suceder a anterior. Como acontece com Antunes, Zé Celso ou Gerald, são diretores cujo estilo se reconhece facilmente. O de Alvim é marcado por duas características. A primeira, o uso da palavra. Ele faz parte de um time de diretores que aposta na força do texto - no caso do Club Noir, de dramaturgos contemporâneos. Além de Motton e de Pinter, a companhia, nova, já encenou no Brasil o norueguês Arne Lygre (Homem Sem Rumo) e um texto do próprio Alvim (Anátema). A segunda característica é o trabalho peculiar com a iluminação. Nas peças recentes de Alvim, a escuridão domina a cena, abrindo espaço para o imaginário, fazendo ruir as barreiras entre vida e morte, concreto e abstrato, tempo e espaço. Isso demanda um trabalho rigoroso de preparação vocal dos atores, realizado de modo primoroso sobretudo por Juliana Galdino, uma das mais talentosas atrizes da nova geração, que é também mulher de Alvim e fundadora ao seu lado da Club Noir. Além de resgatar o valor supremo da palavra, a penumbra exige imaginação do espectador para a compreensão da obra. "Temos que enxergar a parcela de vida que ainda não foi sufocada pela tempestade de imagens e barulho do mundo atual", diz. Alvim se convenceu a aderir a essa espécie de estética da penumbra também por acaso. Embora possuísse a inclinação para espetáculos com pouca luz, o diretor resistia. "Isso não pode, isso não é teatro", dizia a si mesmo. Em 2007, poucos dias antes de estrear Homem Sem Rumo, faltou luz na sala de ensaio. "A luz de emergência iluminava muito tenuamente o espaço, e me fez perceber que se você não tem fisionomia, as figuras mudam de estatuto dentro da cena", diz. CABANA NO PIAUÍ A carreira de Alvim tomou rumo depois de uma crise pessoal. Aos 22 anos, ele abandonou uma precoce e já profílica trajetória como diretor para se recolher dentro de si, quase à margem da vida, resultado de uma experiência gerada pela prática de meditação. Formado na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), no Rio de Janeiro, Alvim montava de três a quatro peças por ano, recebendo boas críticas. Um dia, parou tudo, experimentando o que chama hoje de "cessação da formalização da linguagem". Ficou três dias sem falar, entrando depois em um estado de contemplação, se comunicando o mínimo possível. A experiência evoluiu para extremos: durante 21 dias ficou sozinho numa cabana no sertão do Piauí, andando descalço, comendo o mínimo possível e usando a mesma roupa preta. Depois disso voltou ao Rio de Janeiro, para a casa dos pais, onde deu prosseguimento a esta vivência. Cerca de um ano e meio depois, recebeu um telefonema. Era um convite para dirigir uma peça. Na verdade, um convite para retornar à vida. "Estava ensaiando uma saída para me tornar andarilho, mendigo, mas, por algum motivo, resolvi dar três passos para trás e aceitar a direção". Depois de retomar a carreira, voltar a dirigir e escrever, Alvim foi chamado para lecionar história do teatro e dramaturgia na CAL. Aos 27 anos de idade, tornou-se diretor artístico de uma pequena sala do Teatro Carlos Gomes e posteriormente do Teatro Ziembinski, no Rio de Janeiro. Dedicou-se, então, à causa da nova dramaturgia brasileira, inicialmente promovendo leituras de textos, depois encenações e cursos de escrita teatral. "Pedro Brício, Daniela Pereira de Carvalho e outros dramaturgos que produzem direto lá no Rio surgiram a partir desse projeto", diz. A empreitada foi interrompida em 2006 quando Alvim se mudou para São Paulo para viver com Juliana Galdino. Pouco depois, a atriz saiu do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) de Antunes Filho, para fundarem juntos a Club Noir. A companhia tem como norte apresentar autores contemporâneos inéditos no Brasil, através de montagens que investigam esta estética da penumbra. Sua sede fica na rua Augusta, em São Paulo, e o espaço segue a linha de outros teatros da região central da cidade, que combinam sala de espetáculos com café - como os Satyros e Parlapatões, criadores de um modelo de negócio que viabilizou o teatro alternativo de São Paulo. A companhia garante o aluguel de seu espaço também com o lucro obtido em cursos de formação de ator, ministrados por Alvim e Juliana. A partir deste mês, e até o fim de fevereiro, a dupla apresenta o resultado destas oficinas, a II Paralela Noir - com montagens de Os Sete Gatinhos, de Nelson Rodrigues, e Os Gigantes da Montanha, de Luigi Pirandello, dirigidas por Alvim, e Anjo Negro, também de Nelson Rodrigues, dirigida por Juliana. ovo frito em cena Como diretor, Alvim trabalha suas idéias à exaustão. Fez sete versões integrais de O Quarto até dar-se por satisfeito. Partiu de uma concepção realista - na qual Juliana se movimentava em uma cozinha e fritava um ovo em cena - para chegar ao extremo oposto desta ideia, menos visual. "É preciso começar de forma figurativa, trabalhando as camadas mais óbvias do texto, para depois entrar naquelas ligadas à essência da obra", afirma. No caso de A Terrível Voz de Satã, tentou iniciar o processo de criação a partir da estética de O Quarto, mas desistiu. As dificuldades eram outras. Ao longo de um ano de ensaios diários, experimentou 19 versões de montagens. Entre elas, uma que fazia referência ao universo da magia negra - com rituais iluminados por velas, invocações satanistas e até bode empalhado em cena.
Gabriela Mellão é jornalista e dramaturga, autora de Parasita, entre outras peças.