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quinta-feira, junho 03, 2004

Lembram?

Eu lembro. Uma mulata de piercing na língua me abraçava com o sorriso. Um olhar admirado me acompanhava olhando a tudo também. “Como são lindas aquelas gurias, como tudo aqui é maravilhoso. Queria que isto continuasse estático no tempo e queria você, aqui do meu lado, para atestar a minha presença”. Será este o pensamento dele? Quem diria o meu grande amigo hoje estar trabalhando num banco. Mas aquelas gurias não estavam interessadas na gente, que bom! Aquelas gurias treinavam, a todo trago, uma paixão pelo palco, pelo foco, pelo prazer de estarem apaixonadas pelo palco. Eu lembro. Aquele cantor arrogante que no fundo todos gostavam, fazendo graça com o fato de todos o acharem arrogante. Que se dane, nenhuma delas casou com o arrogante. Migraram para um outro palco, este mais democrático, dividido em três. Como eu as adorava e ainda adoro. A cerveja descia sempre depois de um movimento ousado. E elas abusavam dos corpos, dos rascunhos de poesia. Sempre sorrindo, não havia motivo para chorar ao lado do palco. Eu lembro também de outros palcos. As prostitutas que conversei e que depois, como quem comete um delito, comi. Lembro-me de como me acostumei com o descaso. Começava a amar todos os bares e ficar indiferente às pessoas, ao conteúdo daqueles ambientes. Mesmo assim, tocava, escrevia, não tinha medo de mostrar que eu tentava acompanhar aqueles que eu admirava. Um polaco tocava guitarra de uma forma corcunda. As notas saiam corcundas e, tímidas, nos tocavam o canal lacrimal quando menos se esperava. Um rapaz de boca grande cantava fados como quem cantava sambas. Sua cara entrava em todas as caras do ambiente. Seu rosto era agora de todos. As pessoas se abraçavam normalmente, como se abraça o travesseiro antes de dormir. Um bar verde me encantou, (antes de descobrir que aquele bar só existia mesmo na primeira vez que se entrava) foi a primeira saída com o indivíduo da fila de espera. Tudo escurecia na época, até minha fala obscureceu meus gestos, minha altivez. Lembro-me da minha mágoa de quando eu era desprezado, meus pensamentos doíam, minha expressão caçoava de mim, meus sonhos procuravam abrigo no meu ventre. Lembro-me de quando não recebia atenção. Hoje ainda não consigo entender as pessoas (aquelas conhecidas figuras) que não davam bola para o meu papo. E parece que quando eu não dou bola para alguém, estou revisitando uma cidade. Lembro-me de como eu comecei a gostar ainda mais da mulher. Cada pedaço de pele, um semestre de aula. Eu lembro de uma guria, que não chegava a ser gorda (mas tava quase lá), me fazer de otário por dias, meses e de como sofria ainda mais para escrever, ainda lembro daquele rosto para escrever e de como seria se...A casca era mais rígida. Eu precisava menos do cigarro. Hoje, preciso mais da bebida. Eu lembro de um indivíduo polido me pedir parceria, como quem pede licença na fila do teatro. Lembro desta pessoa se preparar em todas as ocasiões. A vida para este poeta era importante, pois todos os pedaços da existência exigiam preparação. Acho que se não fosse por este rapaz da fila do teatro eu não estaria escrevendo. Não daria a mínima aos pedaços da vida. Não sentiria nem o gosto da cobertura. Eu lembro de um maluco de olhos fundos gritar “rendam-se terráqueos” e um mameluco de olhos serrados gritar “renda-se França”. Lembro bem do olhar dos dois, pois quando comecei o curso de letras vi tantos outros olhares parecidos. Lembro da minha querida poeta de 20 anos (será verdadeira a idade?) me pedir um beijo, me chamar de amado, mesmo que por brincadeira. Lembro de me sentir importante perto de todos estes daí. São tantos, mas a partir do momento que aquele individuo estranho de braços nos olhos me pediu parceria na fila deste grande teatrão eu percebi: por que não começar a lembrar de todos?

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