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domingo, maio 16, 2004

Visões do paraíso

Dando continuidade a série "visões do paraíso", hoje vocês leitores terão o privilégio de conhecer a polêmica visão do jovem poeta Luiz Felipe Leprevost sobre a cidade de Curitiba. Com o livro de poesia "fôlego" lançado no ano de 2000, o poeta prepara agora o lançamento da sua mais nova edição entitulada "máscara óbvia", a sair pela Travessa dos Editores. Com respostas ácidas, porém sinceras e contundentes, Luiz Felipe abalou geral as estruturas deste blues. Confira a entrevista com esta, que é, com toda certeza, uma das figuras mais marcantes da atual poesia curitibana.

Conte para os nossos leitores o que é ser um poeta como o Luiz Felipe Leprevost?

Nosso amigo Tibério Santos diz brincando: “O Luizinho é um homem simples, um poeta do povo”. Realmente estou constantemente em busca disso. Ser simples e conseguir uma poesia que comunique é bastante difícil, exige calma e persistência. É necessário estudo, conhecimento das coisas, para que se possa tomar consciência de seu talento. Não saber como usar o talento é desperdiça-lo. Ocorre que tal consciência não amadurece de uma hora para outra. No meu caso, quero crer que estou no caminho e que o sol já começa a nascer no horizonte do mar.
O meu segundo livro, que sai ainda esse ano pela Travessa dos Editores, já é bem mais consciente que o primeiro, nele consigo trabalhar com conceito, com temática, consigo apostar em determinada linguagem. Acredito que há ali maneira própria no dizer, unidade e coerência no discurso. No entanto, ainda sou um poeta, como dizia Vinícius de Moraes, em busca de minha forma e de meu fundo.


Qual a sua relação com Curitiba? No que a cidade influenciou o seu jeito de escrever e de viver?

Eu sou curitibano. Ou melhor, curitiboca. E encho a boca para dizer isso, não tenho medo de ser apontado como tal, não fujo do que somos. Aquela Curitiba defendida tardiamente por alguns intelectuais de plantão não existe mais. O próprio Dalton Trevisan sabe disso e trabalha em sua literatura com essa ilusão da Curitiba do passado em contraponto com a cidade nova da era Jaime Lerner. Ele ainda tem a prosa mais radical e poética da região, e tem noventa e nove anos de idade. Que escritor jovem local fala sobre os Mocós, sobre os viciados em crack? É claro que eu não posso escrever como o Dalton, aquela Curitiba eu nunca vi.
Fui criado na nova cidade do Lerner, brincava dentro do Clube Curitibano e do Graciosa, freqüentava festinha americana nos salões dos prédios do Batel, estudava no Colégio Positivo. Somente no segundo ano da faculdade de direito comecei a conviver com artistas, e nunca pensei que sofreria os preconceitos que sofri. Somente quando larguei a faculdade de direito e larguei o emprego em um grande escritório de advocacia, comecei a beber nos bares do Largo da Ordem. Agora, nem mesmo por isso eu virei uma réplica dos poetas dos anos setenta, desses que se vê ali por perto da Reitoria. A nossa produção sofre desse atraso, principalmente a musical.
Outro sintoma: Os artistas do centro se fecham para o resto da cidade. Só tocam em bares da região, só fazem teatro na região. Depois reclamam que os curitibocas não vão ao teatro. Tem gente que está mudando isso. O Grupo Fato fez diversas apresentações em escolas periféricas. Tem um diretor de teatro, o Beto Lanza, que também invadiu a periferia e realiza um trabalho corajoso. Não quero ser injusto, é preciso dizer que o convívio com os artistas do centro me ajudou muito. fiz muitos amigos. Creio que eu não poderia pensar sobre a minha condição na cidade se não tivesse existido essa aproximação.
Mas eu não quero ficar fechado no centro, achando que sou o poeta estrelinha do bar da esquina. O fato é que existe uma Curitiba nova , que surgiu com a era Lerner. O Sítio Cercado, por exemplo, é uma cidade independente, tem tudo lá, inclusive poeta. Ou nós que somos curitibocas, e incluo aqui os Caetanos e os Leminskis do centro, começamos a dialogar com essa Curitiba do novíssimo curitibano, ou vamos ser engolidos pela nossa própria falta de interesse e comodidade. A minha maneira de ser um artista em busca da cidade, da grande Curitiba é a seguinte: Ir me forjando, ir me forjando para me transformar na cidade, para ser parte dela, para ser vivido por ela, ser escrito afinal por ela.


Curitiba, na sua ótica, é uma cidade de bons escritores?

Claro! Dos melhores do país. Nós somos radicais. Me parece que a nossa literatura é bem independente das vanguardas oficiais do Brasil, diferentemente das outras artes feitas por aqui. Talvez eu seja um pouco injusto, mas os nossos artistas expoentes estão na exceção, o resto que aparece na mídia é pastiche. E tem os bons que não são vistos, estão na invisibilidade de por aí. Mas na literatura a história não é bem essa, uma grande parte tem qualidades e está publicando ou já publicou. O problema está no consumo interno dessa literatura. Pouca gente lê os autores locais. Sobre a questão das outras artes, e aí não falo só de Curitiba mas do Paraná, os nossos maiores são reconhecidos como paulistas, como vanguarda paulista.
Veja o Arrigo, o Itamar, Bortolotto, tudo São Paulo. Tem também os atores, que sem a televisão sequer seriam cumprimentados por outros atores no café da classe. Já com os escritores acontece diferente, e isso é curioso. Um estado que tem Newton Sampaio, depois o Dalton, Jamil Snege. Agora mais recentemente tem o Paulo Sandrini, que cagou para toda essa moda de neo-realismo e fez um livro de realidade fantástica. Tem você (Alexandre França) a escrever uma poesia que, no mínimo, tem dicção própria efervescendo nela, assim como a poesia do Fernando Koproski, isso é já muitíssimo positivo. Também não é em qualquer lugar que alguém escreve um Catatau, como o Leminski. Ou um Mar Paraguayo, como o Wilson Bueno. Ou um Mez da Grippe, como o Valêncio Xavier. Posso até dizer, embora o nosso simbolismo seja inferior ao do Cruz e Souza, que há uma importância tremenda para essa estética na obra do Tasso da Silveira.
O movimento simbolista foi muito forte aqui, é uma identidade natural nossa. Hoje em dia nós absorvemos esse eco sem prestar muita atenção, e é por isso que a poesia aqui em Curitiba está conseguindo se livrar do fantasma que o Leminski deixou. Não dá mais para repetir aquilo. Nos Anseios Críticos, inclusive, o próprio Leminski falava sobre uma certa geração neon, que somos nós. O problema todo é que a gente tem desejo de inovar, tem vontade de ser genial e acha que o atalho é dando seqüência para aquilo que o Leminski fez. Isso é um equivoco. Não dá para continuar aquele caminho do Leminski, não dá para entrar de gaiato. O cara que fizer isso vai se arrebentar. Eu mesmo já me espatifei.
Eu não estou aqui decretando uma luta contra o passado, contra o Leminski. Muito pelo contrário, estou dizendo que é preciso conhecer para não se tornar uma cópia falsificada daquilo. A única maneira de se escrever uma boa poesia é colocar o próprio corpo no papel, é ser o papel. Só a individualidade é original. E só é original o que vem da origem mais remota do escritor. Ser o que se é, isso sim é radicalismo. Temos exemplos aqui em Curitiba. Quer algo mais radical do que a Helena Kolody, em Paisagem Interior, de 1941, escrever hai-kais, em um mesmo livro que contém sonetos simbolistas? Nossa literatura não brinca. Até aquela idiotice autofágica que nos parecia sina está diminuindo. Todos nós estamos querendo diálogo.
Todo mundo padeceu muito de crítica no passado. Sinto que até os mais velhos querem continuar se pondo na praça. Não dá para ficar esperando que o Wilson Martins escreva sobre um livro seu. Se isso acontecer, bacana. Mas antes festejemo-nos uns aos outros. Está nas nossas mãos continuar o que é bom e mudar o que é ruim da herança que recebemos dos escritores mais experientes. Eles fizeram muita cagada politicamente, pareciam querer ver o coro do outro, ninguém conversava, ninguém escrevia um prefácio ou uma matéria para um escritor novato. Não é enterrando o passado que vamos fazer a nossa história, tem que conhecer o que os caras fizeram. Tem que saber quem foi Emílio de Menezes, quem foi Emiliano Pernetta. Tem que saber quem é Leopoldo Scherner, quem é Rio Apa.
Também acho que só conhecer não basta, o poeta tem que escrever comovido pelas questões do mundo. Não podemos repisar a caquinha que a geração que veio imediatamente depois do Leminski deixou. Os caras ficaram durante anos batendo a punheta da metalinguagem na obra e, no convívio, ficaram igual mosca sobrevoando a merda da intriga. Acho que as coisas estão melhores, mas acho que precisa mais. A nossa Universidade, a Academia, deveria dar conta da produção local. Teses a respeito do Dalton já foram escritas exaustivamente. Por que não estudam o Manoel Carlos Karam, por exemplo? O cara é um dos grandes. Tem que ter debate na Universidade sobre o livro do Edson Falcão, sobre o do Henrique Komatsu. Tem que se falar em Ricardo Corona, que é um dos poetas mais ousados da cidade, tem CD de poesias, tem livro em parceria com artista plástica. Olha, tem que se falar do Sérgio Rubens Sossélla, do Marcos Prado.
Tem que saber descobrir poetas desconhecidos, tem que saber agregar a produção dessas pessoas. O Fábio Campana é editor e descobriu uma poeta chamada Bárbara Lia. É uma senhora de sessenta anos que escreveu poesia a vida toda e sempre esteve na margem. Tem outra poeta que é genial e é louca de verdade, a Bia de Luna. Acontece que a produção e a vida dela são tão caóticas que ninguém tem coragem de se envolver. Se eu fosse editor ela seria a primeira da minha lista. Não dá para ficar estudando somente Ezra Pound. Ainda falta organização na nossa literatura, falta crítica, falta conversa, falta lugar para que estas conversas aconteçam.
Esses eventos anuais que a fundação cultural faz para celebrar o Leminski nada representa para nossa literatura. Embora os poetas que ali estão devam ser respeitados e admirados, A Casa do Poeta, ali no Largo da Ordem, também nada representa para nossa literatura. Essas coisas só funcionam para iludir bobo alegre.


Você acredita no fato de estar dando continuidade a alguma linha que os escritores curitibanos seguiram no passado (se é que eles seguiram alguma linha de escrita)?

No começo, quando eu só conhecia um ou outro poeta em destaque, eu pensava ter vocação para ser o discípulo que levou aquela estética até as últimas conseqüências. Hoje acho tudo isso uma canoa furada. Se eu conseguir dar continuidade a mim mesmo, e isso é dedicação para a vida toda, então já me parecerá que é o suficiente.

Em qual posição, na sua opinião, Curitiba está no atual cenário poético brasileiro?

Em todas. Porem, como diz o Jaques Brand, não dá para todo mundo fazer o gol. A necessidade oficial de se manter a idéia de um mito literário, de um poeta maior está deixando o público cego e está enfraquecendo o veradeiro valor que a obra dessas pessoas tem. Porra, o Emiliano Pernetta, em decorrência de sua popularidade, foi consagrado como “príncipe dos poetas paranaenses”, e agora sequer é lembrado. A Helena Kolody foi consagrada como “a maior poetisa da história do Paraná”, e agora só se fala dela em chá de avós. O Leminski é considerado “o grande gênio da nossa poesia”, e agora os críticos estão falando que a sua produção poética é um equívoco e que só tem valor sua prosa.
Não dá mais para enganar o público com título plastificado. É claro que estes autores são maravilhosos, transformá-los em bobos da corte é que é errado, diminui seu valor. E o público que gosta de poesia não compra quem tem valor duvidoso. E se os que são considerados grandes gênios são gênios de valor duvidoso, então como é que se sustenta o resto da literatura feita no Paraná? Nós precisamos do público. Precisamos ser consumidos aqui dentro, antes de mais nada. Nós temos que parar de mendigar parceria com músico de São Paulo só para ver nossa poesia cantada no palco do Guairão. Temos que parar de dar o rabo para conseguir resenha na folha de São Paulo. Agora, temos que lançar o livro em São Paulo, em Porto Alegre, no Rio. Só que temos também que ir lançar o livro em Irati, em Castro, em Piraí do Sul, em Guaratuba.
Temos que fazer amigos, temos que nos respeitar. Temos que entender que as opiniões críticas não devem ser, para o escritor, maiores que a sua necessidade de escrever. Temos que pensar que um cara como o Paulo Polzonoff é importante para o nosso jornalismo local. Ele é incisivo, dá porrada, se equivoca, mas provoca, pinica, é inteligente, estuda, lê, combate. Alguém tem que fazer esse serviço, tem que tirar a poeira, já que a Academia não faz. De qualquer forma, o escritor não pode dar muita bola para isso, para querelas. Não estou falando em briga, estou falando em movimento, em movimento interno. Temos que participar de eventos, temos que criar eventos.
Temos que ir falar sobre a obra em escolas, em faculdades, não somente para fazer publicidade, mas para levar a poesia até as pessoas. Conversar com as pessoas, com os leigos, com os não iniciados. Um poeta para ser lido, antes de mais nada deve ser querido por seu povo.


Se fosse para você fazer uma poesia para algum lugar de Curitiba, para qual local você faria e por quê?

Alguém me disse uma vez que Curitiba é um não-lugar. É engraçado, um curitibano faz uma canção sobre Copacabana e a música faz um puta sucesso nos bares aqui de Curitiba. Se o mesmo cara faz outra canção, essa falando sobre os nossos belos pinheirais e sobre a gralha azul, nossa como isso vai soar falso. Ainda não sei explicar esse fenômeno. Por incrível que pareça, a música que eu conheço que melhor fala da nossa Curitiba é obra de um carioca, e é um samba, como não poderia deixar de ser. É do Antônio Saraiva e o Alexandre Nero gravou. Acho que vale a pena colocar a letra aqui: um afoxé muito branco emerge das brumas / o vento frio e a bruma parecem não crer / nos ursos polares, vampiros, destaques do bloco / que varre a cidade de vodka e som / velhos cristãos já sabiam fazer uma varra / faltava era só aprender a bater agogô / dentro e fora do tempo suingue quadrado / quadris emperrados começam estremecer / será que Wojciela / de branco encara Oxalá? / será que o prefeito perfeito vai patentear? / será que no ano que vem também vão desfilar? Parece, disseram, que isso veio pra ficar / loucos e lúcidos dançam nas ruas e parques / sempre cantando em puro polaco-nagô / agora que já misturaram dendê e Descartes / Gdansk, Curita e Bahia são da mesma cor”.
Dá para ver que é uma letra cheia de ironia e referenciais da atualidade, Curitiba já não é mais somente curitibana. Eu acho que quando agente consegue falar da cidade com esses referenciais e deixa para trás os pinheiros e a gralha azul, aí a gente consegue fazer com que as pessoas se identifiquem, tanto quanto se identificam com o cruzamento da Ipiranga com a Avenida São João quando escutam o Caetano. Se hoje fosse fazer um poema sobre alguma parte de Curitiba, eu faria sobre o Tubo do Expresso, Estação Praça do Japão, onde você desembarca, com um bando de gente triste, pelas portas dois e quatro e cai na frente de um posto Texaco, onde você pode comprar, na loja de conveniência, uma deliciosa cerveja Kaiser Summer, mesmo estando em pleno inverno.


Esta pergunta já foi feita em outras entrevistas, mas acredito ser pertinente para o tema que eu escolhi para esta série: você considera Curitiba uma cidade poética? Por quê?

Eu considero Curitiba uma cidade misteriosa. Há muito estranhamento, para mim, na maneira de ser do nosso povo. Toda a contradição que Curitiba carrega em suas costas, como carregasse uma cruz, isso tudo faz a cidade ser extremamente poética. A nossa cidade é uma musa decadente, como algumas putas velhas que freqüentam, não as ruas da Saldanha Marinho, mas os salões do Clube Curitibano. Eu sou da opinião que quanto mais blindex em nossa janelas, e quanto mais formos Capital Mundial Não Sei de Quê, mais e mais e mais nós seremos decadentes.

As pessoas que o conhecem sabem que a relação entre a sua poesia e a música sempre foi muito estreita. Qual é esta relação e por quais músicos curitibanos você foi influenciado? Por quais razões?

O primeiro tipo de música pelo qual eu me interessei foi a caipira. Modas de viola sempre me emocionaram. Aquilo está entre a fala e o canto. A interação com o instrumento é perfeita. Quando escrevi meus primeiros versos, escrevi imitando os de Cabloca Teresa. Ou seja, a oralidade já vem daí. É claro que isso se misturou com outras influências da minha formação de então. Uma vez um professor pediu que levássemos um poema decorado. Levei um soneto do Camões. Tudo o que eu queria dizer para a menina que eu gostava estava dito ali. Depois que este professor me escutou declamar o Camões, me encaminhou para o irmão Balestro. Eu pensei que ia levar uma bronca do irmão, que tinha fama de ser muitíssimo brabo e louco. Brabo ele não era. Mas louco, sim. Passou a me treinar. Me ensinava declamar poemas do Camilo Pessanha.
Aquelas foram minhas primeiras aulas de teatro, de música e de literatura. Isso de falar poemas em público desde pequeno me acompanha. E o que é um poema falado senão música? Todo poema é um piano de possibilidade, a sua melopéia é múltipla. Acho que por conta dessa formação a minha poesia interessa os músicos. Os dois primeiros amigos que eu fiz, que eram artistas de verdade, foram a Rose Moraes e o Gerson Bientinez, dois músicos. Foi natural que a minha poesia começasse aparecer por esse viés. Até hoje sinto que meus poemas não se contentam com as páginas dos livros apenas. Eles precisam ser gritados, sussurrados, sonorizados de alguma maneira. Na medida que fui ocupando os palcos da cidade, notei que eu tinha que conseguir me comunicar com o público. Notei que eu precisava ser um artista de palco. Para isso eu tentava imitar o Alexandre Nero. Posso até dizer que eu declamo como ele canta e que ele canta como eu declamo.
Engraçado que quando eu declamava poemas muito pungentes e longos, eu geralmente amassava as folhas e jogava para a platéia. No último show do Grupo Fato, o Atamancados, o Nero abre o show declamando meu poema Technera e jogando as folhas para o público. Depois de uma dessas apresentações a Rogéria Holtz me falou: “O Nero tá te imitando”. E eu disse: “Mais do que justo, eu já imitei tanto ele”. Outro cara que é músico também e me influenciou foi o Tatará, por causa da questão oral, por ser um sujeito meio iconoclasta. Eu sou ou da epifania, da violência, da porrada, ou da delicadeza total. Contradições, meu amigo.


Como você vê a atual arte (tudo, ou seja, teatro, artes plásticas, cinema...) produzida em Curitiba?

De música eu gosto de muita coisa, embora me identifique mais com o Grupo Fato e com o Troy Rossilho, porque este é meu parceiro e as suas melodias combinam com os meus poemas que tem vocação para letra de música. Como público eu gosto do pessoal da música caipira e dos caras do fandango do litoral. Das artes plásticas eu não conheço nada. Tem um ou outro pintor que às vezes me chama a atenção pelas cores, mas eu seria injusto ao dizer qualquer coisa. De qualquer forma, parece que tem uma galera bem respeitada por aí, com trabalhos fora do país, um pessoal que se destaca. Também existe uma gama de artistas plásticos que já superaram a tela tem muito tempo. Aqui em Curitiba tem gente das faculdades de artes visuais procurando fazer coisa diferente, trabalhos em mil mídias, obras virtuais etc.
Mas eu ainda gosto da tela, gosto de sentir o cheiro da tinta, gosto de esperar o quadro secar, esse ofício me lembra o do escritor. Já o cinema me parece ser uma extensão das artes plásticas. Não sei quem em Curitiba tem visão parecida com essa. Mas na verdade eu não saberia dizer nada sobre a produção, mesmo porque eu não gosto de cinema. Dos que fazem teatro, entre tantos amigos, me emociono muito com a Regina Bastos em cena.


E o teatro? O seu próximo lançamento tem uma grande influência do teatro.Você é mais ator ou poeta? Aproveita para falar sobre o teatro em Curitiba.

Sobre o meu livro eu prefiro nada dizer ainda. Não quero por os pés pelas mãos. Ainda estou ensaiando escrever como quem anda. Sobre ser mais ator que poeta ou mais poeta que ator, não sou mais uma coisa nem menos outra. Não sou também um pouco de cada coisa. Eu sou poeta. E só poeta. Mesmo quando estou trabalhando como ator eu sou poeta. Da mesma maneira que ocorre com a música, o meu trabalho como ator é uma extensão da minha poesia. Eu só estou ali, estudando como ator porque a poesia me dá essa possibilidade, às vezes cobrando algo a mais, às vezes me impondo o fazer teatral. O que eu escrevo tem muita força e fluência quando desabrocha das expressões orais. Por conta dessa característica comecei ser bem recebido pelos palcos da cidade. Então comecei a estudar teatro, primeiro com a Fátima Ortiz e depois no Ateliê de Criação Teatral, para ampliar meu repertório corporal, para melhorar minha dicção, para saber medir a emoção, para me aperfeiçoar tecnicamente, enfim. Estudando teatro entendi que o que eu fazia antes já era teatro. Por isso continuo estudando até hoje. Minha poesia melhorou, minha escrita melhorou, tudo melhorou muito desde que comecei tomar consciência de certas questões da prática teatral.
Foi no teatro que passei a conviver definitivamente com artistas, pessoas que sobrevivem fazendo arte e não deixam a peteca cair. Somente no teatro eu consegui me assumir como artista mesmo, pude ver que é possível. Conviver com gente como Fátima Ortiz e Nena Inoue, que foram minhas professoras, e com o Luis Melo, que é meu colega de turma em um grupo de estudos sobre o escritor russo Tchekhov, sem dúvida me ajudou entender que é necessária a dedicação de uma vida inteira a favor da arte. Me fez entender que essa é uma escolha sem volta, o comprometimento deve ser total, caso contrário não existe o fazer artístico. Pouca gente do meio teatral de Curitiba entende isso. Pouca gente mesmo. E é por isso que o teatro de Curitiba não vai indo muito bem. Existe aqui um tipo de postura em relação as produções que é absolutamente equivocada. Tem muito consentimento no meio teatral. É pela postura de quem faz teatro aqui que o público daqui também é totalmente alienado.
Fazer teatro em Curitiba virou um bom negócio. Os atores ensaiam uma peça em menos de dois meses e estreiam, aí ficam dando aquela desculpa de que a peça se faz mesmo durante a temporada. Mentira. Durante a temporada a peça passa por um outro momento. É claro que descobertas devem acontecer durante a temporada, mas já é um outro estado de construção, de aprimoramento, de aprendizagem. Tem que ter respeito com o público, mesmo se a intenção estética seja a de desrespeitar o público. Os produtores, diretores e atores estão sendo acostumados de uma maneira bastante ruim pelas leis de incentivo. Na teoria a coisa é bonita, só que na prática virou uma maneira de ganhar dinheiro fácil. São muitas as pessoas do teatro paranaense que eu chamaria de picareta. O nosso festival, por exemplo, é outra fantasia. É ilusão para bobo alegre.


Aqui você deverá fazer uma pergunta ao entrevistador. Sem pena alguma, mande ver.

Nós temos uma amizade antiga, já discutimos muito sobre muitas questões. Parece-me que para nós não há nada mais significativo que o exercício poético. Sobre a sua poesia eu poderia dizer que a considero extremamente lírica. Você a defende como sendo anti-lirismo. Eu gostaria que você expusesse um pouco desse seu conceito. E em alguma outra oportunidade eu poderei defender a idéia do lirismo, para mais uma vez contrapor a minha opinião com a sua.

Resposta: Bom, Luiz, na verdade eu nunca defendi este negócio de dizer que a minha poesia não é lírica, mas as pessoas que leram o meu primeiro livro, sim. Eu defendo o fato de que toda e qualquer poesia é lírica, mesmo que nela contenha um número infinito de palavrões e escatologias (ou mesmo sendo ela um poema concreto). Defendo, sim, a idéia do anti-lirismo lírico, ou seja, aquela coisa que quer parecer (ou, num primeiro momento, aparenta ser) não-lírica e que na verdade possui uma decadência tão lírica quanto um "eu te amo" dito por uma prostituta de luxo do batel. O lirismo está em tudo.

Agora você tem o direito de falar o que quiser, o que quiser mesmo. Manda ver.

Nada pode dizer mais e melhor que um bom poema. Fiquemos com esse:

Ofício Humano
de Murilo Mendes

As harpas da manhã vibram suaves e róseas.
O poeta abre seu arquivo — o mundo —
E vai retirando dele alegria e sofrimento
Para que todas as coisas passando pelo seu coração
Sejam reajustadas na unidade.

É preciso reunir o dia e a noite,
Sentar-se à mesa da terra com o homem divino e o criminoso,
É preciso desdobrar a poesia em planos múltiplos
E casar a branca flauta da ternura aos vermelhos clarins do sangue.

Esperemos na angústia e no tremor o fim dos tempos,
Quando os homens se fundirem numa única família,
Quando ao se separar de novo a luz das trevas
O Cristo Jesus vier sobre a nuvem,
Arrastando por um cordel a antiga Serpente Vencida.


É isto. Valeu pela entrevista.

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