Claudete Pereira Jorge na leitura de "Final do Mês"
Mãe - Tem gente que passa anos sem ser reconhecida, levando o passado estampado na cara, levando todos os dias a roupa suja dos filhos e do marido na lavanderia do bom senso. Tem gente que mata o tempo na beirada da varanda, brincando com o salto, brincando com a iminência, brincando com a precariedade. Tem também os que fumam a vida inteira escondidos da família (acende um cigarro), na esperança de que aquela gente tão próxima não descubra o poço de fragilidades e recalques a sufocar o cérebro. Tem gente que não suporta os seus próprios recalques. Tem gente que quebra todos os espelhos da casa antes de sair. Tem homem que bebe escondido da mulher, para que ela não perceba que aquela desenvoltura, aquela sensível violência é fruto de algo engarrafado numa industria onde milhares de garrafas como aquela são engarrafadas. Tem gente que prefere o tédio a uma fotografia feliz. Tem gente que prefere dormir no colo silencioso da solidão. Tem gente que prefere esquecer as contas para pagar no final do mês. Tem gente que prefere esquecer o filho na saída da escola. Tem gente que prefere fugir para qualquer lugar onde não existam pessoas queridas, entes queridos, indivíduos pelos quais você morreria. Tem gente que prefere nunca mais encontrar estas pessoas, para se livrar do restinho de responsabilidade que ainda existe. Tem gente que prefere cães a gatos. Tem gente que se vê num cão sem uma das pernas. Tem gente que vê a sua dependência na dependência deste cão. O ser humano é um animal altamente dependente. É na dependência que se encontra o desespero humano, é na dependência que se encontra a maior concentração de carne humana, é na dependência que se percebe que as coisas são mais fáceis do que se imagina. Tem gente que prefere dar um tiro na boca, a atravessar o centro de carro com o intuito de finalmente voltar para a casa.