As Cecílias do Rio de Janeiro
Chego ao Rio de Janeiro. No fundo, através da porta de vidro automática, apenas uns óculos escuros me esperam. Como manda a tradição dos encontros entre “França e Luiz Felipe Leprevost”, Luff (apelido carioca), parecia estar na entrega do Oscar para me buscar no aeroporto. Claro, com aquele jeitão dele: camisa velha dos tempos de adolescente, bermuda, chinelos havaianas e um cabelo muito, mas muito comprido mesmo. Contava-me as novidades do Rio, sempre com movimentos largos, característicos de sua afobada poesia. Chegando ao seu ap (que, por ironia do destino, fica em cima de um bar) eu já conhecia - ou pelo menos já imaginava conhecer - a figura de uma linda mulher chamada Cecília. Era Cecília para lá, era Cecília para cá, e que “você tem de conhecer a Cecília” acolá. Enfim, um carnaval de Cecílias boiando nas rasas, porém sinceras, águas de nossas conversas. Cansado de uma viagem de conexões, na qual se espera até três horas para pegar o próximo vôo, com a consciência preguiçosa aceito caminhar ao redor da Lagoa, na companhia do jornalista Paulo Polzonoff. No começo, apenas reclamo, mas no final, apesar das minhas coxas estarem assadas pelo atrito constante entre elas (sim, não é só a minha barriga que está crescendo) e dos meus ouvidos ainda estarem danificados pela pressão de um vôo entre São Paulo e Rio de Janeiro, adorei o passeio e revigorado, com os pulmões brevemente limpos, brindei o último passo com uma água de coco. O jornalista em questão comandava a compra das três águas de coco: “a primeira é dele (eu)...ele está precisando mais”. Polzonoff, que sempre julguei ser um chato, parecia-me um tio-moleque vaidoso, daqueles que adoram ensinar os sobrinhos a empinar pipas. Demonstrou possuir uma doçura diferente das venenosas linhas de seus ataques literários. Pensava eu: “quem diria que o autor do texto sobre o Mirisola ‘o cancro e o pus’ seria um cara tão gente fina...e quem diria que ele esteja me recebendo tão bem”. Dias depois, em Santa Teresa (o bairro que mais gostei no Rio) comendo uma feijoada num ótimo lugar chamado “bar do mineiro” o Polzonoff, para mim, era apenas Paulo.
Começa a anoitecer e a minha paixão pelo Rio de Janeiro começava a amanhecer. Aquelas montanhas todas, o Corcovado, o cristo, as águas, a boca banguela da Guanabara, todas as ladeiras: no limiar entre a noite e o dia, tudo atingia uma coloração de “arrombar retinas”, como diria o Chico Buarque (que infelizmente, não avistei em nenhum canto da cidade maravilhosa). Depois de alguns chopes numa churrascaria no Baixo Gávea, o Luff dá uma idéia: “França, e se o cristo se atirasse do Corcovado”. Pronto! Surgia a nossa primeira parceria no Rio de Janeiro. Fomos para casa, fechamos a música e os nossos olhos. O outro dia nos esperava com mais duas figuras brilhantes: Felipe e Sandro. O primeiro, devido a sua discrição asmática, parecia não ir muito com a minha cara (impressão que, posteriormente, demonstraria estar completamente equivocada) o outro era mais falante, ria com uma ironia benigna de quem sabe atacar pelos flancos de pseudointelectuais. Parecia aderir mais ao estilo marginal, ao qual me acostumei aqui em Curitiba. Conversei mais com o Sandro, em função da minha preguiça de conhecer e embarcar na do outro. Luff observava e aguardava o momento de fechar os trilhos da noite. Já passava das 4 da manhã e resolvemos embromar os últimos minutos da nossa pugna etílica num boteco próximo a área turística mais adorada pelo “homem branco”: Copacabana. Não poderia faltar era uma briga entre “França e Luiz Felipe”. Brigamos a valer. Mandamos um ao outro calar a boca e emburramos, deixando Sandro um pouco sem graça, porém empolgado com a drástica reação de dois indivíduos que definitivamente não levam desaforo para casa. Em Copacabana, entre putas e turistas albinos, a televisão sussurrava em nossos ouvidos: “Não precisamos de benção, temos a publicidade”. Pronto! Antes de dormir, mais uma música para o repertório.
Acho que dois ou três dias depois rolou a festa na casa da Cecília (sim, aquela do começo do texto). Sem conhecer ninguém, com um pretensioso violão nas costas, fui adentrando no ap de Cecília. O Luff já havia falado tanto sobre a menina que, confesso, fiquei ansioso em conhece-la. Surge então uma mulher, cabelos longos, com uma espécie de bata que ressaltava de uma forma furiosa as suas longas pernas: “e aí, você toca violão”. “Deve ser a Cecília”, pensei. “Sim, toco”. Trocamos meia dúzia de palavras. Simpática pra caramba. “É...o Luiz Felipe tem razão!!”. Fiquei durante uma hora dividido entre as pernas, o papo da suposta Cecília e a vista maravilhosa que dava para o Corcovado. De repente eis que a menina dá um grito incisivo em direção a cozinha “Ciça, vamos fazer uma caipira”. Enfim, a suposta Cecília (que até aquele momento correspondia ao relato empolgado do Luff) era na verdade Aline, uma menina “isssperrrta” que até um violão arranhou, num pout-porri no mínimo diferente, que misturava Alceu Valença com The Police. Conversei com todo mundo do lugar, empolgado com a reação das pessoas e embriagado com o clima festivo do ap, com destaque para um rapaz chamado Diego, que com certeza foi quem melhor desenvolveu um papo comigo lá no Rio. Conversei horas com Diego, alternando os temas: de Wittgeinstein à Tom Zé, o cara tinha saliva para tudo. Conversei com todo mundo menos...sim, menos com a tal Cecília. Simplesmente, neste dia, não consegui trocar nem um “a” com a menina, em função de um excesso de álcool no sangue dela e no meu. O único contato foi quando, num momento maravilhoso, a Cecília (a verdadeira), Aline e mais uma moça, que agora eu não me lembro do nome, começaram a dançar, numa espécie de ciranda de apartamento, que, devido às caipirinhas tomadas, lembrava a dança das bacantes. “Só falta uma cabra ser sacrificada” pensava. A Cecília da festa, a não ser pela inegável beleza física, não se parecia com a Cecília do Luff e, por conta disto, fiquei, de certa forma, frustrado pelo meu engano. E o pior de tudo é que não era só o Luff que elogiava a tal Cecília não, era a festa inteira: “a Ciça é do caralho” entoavam os integrantes deste encontro. “Nem acho!” pensava eu, secretamente.
Se não visitei mais da metade das livrarias do Rio, dei uma passada nas principais: Livraria da Travessa, Argumento, Letras e Expressões, etc. Foi na Travessa que o Felipe (aquele, com a discrição asmática) surpreendeu a mim e ao Luff, ao nos apresentar uma das meninas mais simpáticas e belas da viagem. “Gente, esta aqui é a Ana...mas não se empolguem não, que ela é lésbica”. A Ana, séria e compenetrada na continuação da farsa: “pô Felipe, também não precisa falar na cara...o que eles vão pensar”. O Felipe, naquele momento, ao invés de demonstrar a sua discrição asmática do outro dia, demonstrava uma falta de ar “siniiistra”, fruto de longas horas de trabalho e de balada. Acabamos num hospital. Próximo aos bares da Cobal, onde o pessoal das redondezas, depois do expediente, pára para relaxar com uma estranha bebida, que mistura cerveja, limão, sal e gelo, paramos o carro. Foi um dos grandes momentos da viagem, por dois motivos: o primeiro é que era inevitável, na espera do nosso colega ser atendido, conversar longamente com aquela mulher maneiríssima que era a Ana. E o segundo é que o Luff, em alguns segundos de devaneio, ao fingir ser médico, começava uma discussão com a plantonista a respeito da validade do exame feito no nosso caríssimo asmático. Estava tudo bem: a falta de ar era devido ao estresse, bastando, então, uma boa noite de sono para ser sanada. Fomos para casa, com a Ana na cabeça e com uma expectativa de encontra-la mais vezes no Rio. Para o meu amigo eterno apaixonado Luff, agora, além da Cecília, tinha também a Ana.
Nos últimos 4 dias de viagem, ocupei-me em ler um ensaio de José Miguel Wisnik sobre um conto de Machado de Assis. Wisnik nos explica que o conto de Machado em questão pode ser dividido em vários momentos, análogos a estilos musicais. Acredito que a minha viagem também. Teve o momento Maxixe, representado pela cena em que eu e Luff conhecemos a Ana. O momento Polca, representado pela festa na casa da Cecília. O momento Sonata, no qual, em uma peça de teatro maravilhosa chamada “O que diz Molero”, encontrávamos a atriz Marieta Severo. E finalmente o momento Réquiem, representado pelo último dia de viagem. No conto, este último momento é o de maior desengano por parte da personagem, que, em suma, almeja compor grandes peças eruditas, mas acaba sempre compondo polcas populares. E foi, justamente, no último dia, que se esclareceu que a Cecília, que o Luff durante a viagem inteira me descrevia, era verdadeira. Saímos para tomar café, eu e o Luff, já sem assunto para compartilhar e com um desânimo de fim de feira. Tomávamos os nossos expressos de maneira sorumbática, esperando o tempo passar. Eis que liga a Cecília e o Luff se agita, como o mar alto agitando ondas na presença inevitável da lua. “França, peraí que é a Cecília”. Com a voz mais mansa do mundo: “alô, estamos aqui tomando um cafezinho...venha então...isto...aqui no Leblon”. Cecília chega e de cara resolve mudar de lugar: “este lugar não é muito interessante”. Obedecemos à ordem da moça e começamos a andar pelo Leblon simplesmente a procura de um lugar conveniente para a exigente musa do Luff. Nestes minutos, acontecia uma coisa impressionante, ao mesmo tempo em que o tema principal do meu Réquiem começava a se configurar. Aquela Cecília era muito parecida com a Cecília descrita pelo Luff. “Nossa, ela é legal mesmo”. A cada passo, Cecília desencadeava assuntos, teses, indicações de livros, filmes e gracejos de todo tipo. Sempre rindo, sempre argumentando, sempre sendo a Cecília. Desde instalar uma revolução artístico-cultural no Rio de Janeiro, à me deixar à vontade, reconhecendo o fato de eu ser o hóspede de todos os assuntos abordados, Cecília constituía um universo único, que merecia ser fotografado de todos os ângulos. Foi o que o Felipe (aquele do pulmão sem ar) fez, depois de nos encontrar em uma padaria ali próxima, ao chegarmos à livraria Argumento. Com uma máquina digital, Felipe respirava através da imagem da Cecília. O que, diga-se de passagem, o deixou muito mais simpático. A impressão de antipatia havia esmorecido. Felipe, na verdade, era bem parecido com a Cecília. Sempre articulando, sempre rindo, sempre argumentando, sempre sendo o Felipe. Apaixonei-me por aquelas duas figuras e prometi um reencontro, num tchau estranho, melancólico até: os dois pegando um ônibus para casa e eu impressionado com o fato de só os terem realmente conhecido no último dia da minha viagem. No dia seguinte, no caminho para o aeroporto, um trânsito violento começava a gorar a minha expectativa de voltar para Curitiba. Aquelas figuras maravilhosas povoavam a minha lembrança e me deixavam com a noção de que o Rio de Janeiro vale muita a pena. A praia, apesar de cinzenta, parecia-me também acenar. Dei tchau para tudo o que eu julgava carioca. O tema do meu réquiem tocava na minha mente em forma de verso: “A melhor coisa de Curitiba, é sentir saudades de Curitiba”.
Chego ao Rio de Janeiro. No fundo, através da porta de vidro automática, apenas uns óculos escuros me esperam. Como manda a tradição dos encontros entre “França e Luiz Felipe Leprevost”, Luff (apelido carioca), parecia estar na entrega do Oscar para me buscar no aeroporto. Claro, com aquele jeitão dele: camisa velha dos tempos de adolescente, bermuda, chinelos havaianas e um cabelo muito, mas muito comprido mesmo. Contava-me as novidades do Rio, sempre com movimentos largos, característicos de sua afobada poesia. Chegando ao seu ap (que, por ironia do destino, fica em cima de um bar) eu já conhecia - ou pelo menos já imaginava conhecer - a figura de uma linda mulher chamada Cecília. Era Cecília para lá, era Cecília para cá, e que “você tem de conhecer a Cecília” acolá. Enfim, um carnaval de Cecílias boiando nas rasas, porém sinceras, águas de nossas conversas. Cansado de uma viagem de conexões, na qual se espera até três horas para pegar o próximo vôo, com a consciência preguiçosa aceito caminhar ao redor da Lagoa, na companhia do jornalista Paulo Polzonoff. No começo, apenas reclamo, mas no final, apesar das minhas coxas estarem assadas pelo atrito constante entre elas (sim, não é só a minha barriga que está crescendo) e dos meus ouvidos ainda estarem danificados pela pressão de um vôo entre São Paulo e Rio de Janeiro, adorei o passeio e revigorado, com os pulmões brevemente limpos, brindei o último passo com uma água de coco. O jornalista em questão comandava a compra das três águas de coco: “a primeira é dele (eu)...ele está precisando mais”. Polzonoff, que sempre julguei ser um chato, parecia-me um tio-moleque vaidoso, daqueles que adoram ensinar os sobrinhos a empinar pipas. Demonstrou possuir uma doçura diferente das venenosas linhas de seus ataques literários. Pensava eu: “quem diria que o autor do texto sobre o Mirisola ‘o cancro e o pus’ seria um cara tão gente fina...e quem diria que ele esteja me recebendo tão bem”. Dias depois, em Santa Teresa (o bairro que mais gostei no Rio) comendo uma feijoada num ótimo lugar chamado “bar do mineiro” o Polzonoff, para mim, era apenas Paulo.
Começa a anoitecer e a minha paixão pelo Rio de Janeiro começava a amanhecer. Aquelas montanhas todas, o Corcovado, o cristo, as águas, a boca banguela da Guanabara, todas as ladeiras: no limiar entre a noite e o dia, tudo atingia uma coloração de “arrombar retinas”, como diria o Chico Buarque (que infelizmente, não avistei em nenhum canto da cidade maravilhosa). Depois de alguns chopes numa churrascaria no Baixo Gávea, o Luff dá uma idéia: “França, e se o cristo se atirasse do Corcovado”. Pronto! Surgia a nossa primeira parceria no Rio de Janeiro. Fomos para casa, fechamos a música e os nossos olhos. O outro dia nos esperava com mais duas figuras brilhantes: Felipe e Sandro. O primeiro, devido a sua discrição asmática, parecia não ir muito com a minha cara (impressão que, posteriormente, demonstraria estar completamente equivocada) o outro era mais falante, ria com uma ironia benigna de quem sabe atacar pelos flancos de pseudointelectuais. Parecia aderir mais ao estilo marginal, ao qual me acostumei aqui em Curitiba. Conversei mais com o Sandro, em função da minha preguiça de conhecer e embarcar na do outro. Luff observava e aguardava o momento de fechar os trilhos da noite. Já passava das 4 da manhã e resolvemos embromar os últimos minutos da nossa pugna etílica num boteco próximo a área turística mais adorada pelo “homem branco”: Copacabana. Não poderia faltar era uma briga entre “França e Luiz Felipe”. Brigamos a valer. Mandamos um ao outro calar a boca e emburramos, deixando Sandro um pouco sem graça, porém empolgado com a drástica reação de dois indivíduos que definitivamente não levam desaforo para casa. Em Copacabana, entre putas e turistas albinos, a televisão sussurrava em nossos ouvidos: “Não precisamos de benção, temos a publicidade”. Pronto! Antes de dormir, mais uma música para o repertório.
Acho que dois ou três dias depois rolou a festa na casa da Cecília (sim, aquela do começo do texto). Sem conhecer ninguém, com um pretensioso violão nas costas, fui adentrando no ap de Cecília. O Luff já havia falado tanto sobre a menina que, confesso, fiquei ansioso em conhece-la. Surge então uma mulher, cabelos longos, com uma espécie de bata que ressaltava de uma forma furiosa as suas longas pernas: “e aí, você toca violão”. “Deve ser a Cecília”, pensei. “Sim, toco”. Trocamos meia dúzia de palavras. Simpática pra caramba. “É...o Luiz Felipe tem razão!!”. Fiquei durante uma hora dividido entre as pernas, o papo da suposta Cecília e a vista maravilhosa que dava para o Corcovado. De repente eis que a menina dá um grito incisivo em direção a cozinha “Ciça, vamos fazer uma caipira”. Enfim, a suposta Cecília (que até aquele momento correspondia ao relato empolgado do Luff) era na verdade Aline, uma menina “isssperrrta” que até um violão arranhou, num pout-porri no mínimo diferente, que misturava Alceu Valença com The Police. Conversei com todo mundo do lugar, empolgado com a reação das pessoas e embriagado com o clima festivo do ap, com destaque para um rapaz chamado Diego, que com certeza foi quem melhor desenvolveu um papo comigo lá no Rio. Conversei horas com Diego, alternando os temas: de Wittgeinstein à Tom Zé, o cara tinha saliva para tudo. Conversei com todo mundo menos...sim, menos com a tal Cecília. Simplesmente, neste dia, não consegui trocar nem um “a” com a menina, em função de um excesso de álcool no sangue dela e no meu. O único contato foi quando, num momento maravilhoso, a Cecília (a verdadeira), Aline e mais uma moça, que agora eu não me lembro do nome, começaram a dançar, numa espécie de ciranda de apartamento, que, devido às caipirinhas tomadas, lembrava a dança das bacantes. “Só falta uma cabra ser sacrificada” pensava. A Cecília da festa, a não ser pela inegável beleza física, não se parecia com a Cecília do Luff e, por conta disto, fiquei, de certa forma, frustrado pelo meu engano. E o pior de tudo é que não era só o Luff que elogiava a tal Cecília não, era a festa inteira: “a Ciça é do caralho” entoavam os integrantes deste encontro. “Nem acho!” pensava eu, secretamente.
Se não visitei mais da metade das livrarias do Rio, dei uma passada nas principais: Livraria da Travessa, Argumento, Letras e Expressões, etc. Foi na Travessa que o Felipe (aquele, com a discrição asmática) surpreendeu a mim e ao Luff, ao nos apresentar uma das meninas mais simpáticas e belas da viagem. “Gente, esta aqui é a Ana...mas não se empolguem não, que ela é lésbica”. A Ana, séria e compenetrada na continuação da farsa: “pô Felipe, também não precisa falar na cara...o que eles vão pensar”. O Felipe, naquele momento, ao invés de demonstrar a sua discrição asmática do outro dia, demonstrava uma falta de ar “siniiistra”, fruto de longas horas de trabalho e de balada. Acabamos num hospital. Próximo aos bares da Cobal, onde o pessoal das redondezas, depois do expediente, pára para relaxar com uma estranha bebida, que mistura cerveja, limão, sal e gelo, paramos o carro. Foi um dos grandes momentos da viagem, por dois motivos: o primeiro é que era inevitável, na espera do nosso colega ser atendido, conversar longamente com aquela mulher maneiríssima que era a Ana. E o segundo é que o Luff, em alguns segundos de devaneio, ao fingir ser médico, começava uma discussão com a plantonista a respeito da validade do exame feito no nosso caríssimo asmático. Estava tudo bem: a falta de ar era devido ao estresse, bastando, então, uma boa noite de sono para ser sanada. Fomos para casa, com a Ana na cabeça e com uma expectativa de encontra-la mais vezes no Rio. Para o meu amigo eterno apaixonado Luff, agora, além da Cecília, tinha também a Ana.
Nos últimos 4 dias de viagem, ocupei-me em ler um ensaio de José Miguel Wisnik sobre um conto de Machado de Assis. Wisnik nos explica que o conto de Machado em questão pode ser dividido em vários momentos, análogos a estilos musicais. Acredito que a minha viagem também. Teve o momento Maxixe, representado pela cena em que eu e Luff conhecemos a Ana. O momento Polca, representado pela festa na casa da Cecília. O momento Sonata, no qual, em uma peça de teatro maravilhosa chamada “O que diz Molero”, encontrávamos a atriz Marieta Severo. E finalmente o momento Réquiem, representado pelo último dia de viagem. No conto, este último momento é o de maior desengano por parte da personagem, que, em suma, almeja compor grandes peças eruditas, mas acaba sempre compondo polcas populares. E foi, justamente, no último dia, que se esclareceu que a Cecília, que o Luff durante a viagem inteira me descrevia, era verdadeira. Saímos para tomar café, eu e o Luff, já sem assunto para compartilhar e com um desânimo de fim de feira. Tomávamos os nossos expressos de maneira sorumbática, esperando o tempo passar. Eis que liga a Cecília e o Luff se agita, como o mar alto agitando ondas na presença inevitável da lua. “França, peraí que é a Cecília”. Com a voz mais mansa do mundo: “alô, estamos aqui tomando um cafezinho...venha então...isto...aqui no Leblon”. Cecília chega e de cara resolve mudar de lugar: “este lugar não é muito interessante”. Obedecemos à ordem da moça e começamos a andar pelo Leblon simplesmente a procura de um lugar conveniente para a exigente musa do Luff. Nestes minutos, acontecia uma coisa impressionante, ao mesmo tempo em que o tema principal do meu Réquiem começava a se configurar. Aquela Cecília era muito parecida com a Cecília descrita pelo Luff. “Nossa, ela é legal mesmo”. A cada passo, Cecília desencadeava assuntos, teses, indicações de livros, filmes e gracejos de todo tipo. Sempre rindo, sempre argumentando, sempre sendo a Cecília. Desde instalar uma revolução artístico-cultural no Rio de Janeiro, à me deixar à vontade, reconhecendo o fato de eu ser o hóspede de todos os assuntos abordados, Cecília constituía um universo único, que merecia ser fotografado de todos os ângulos. Foi o que o Felipe (aquele do pulmão sem ar) fez, depois de nos encontrar em uma padaria ali próxima, ao chegarmos à livraria Argumento. Com uma máquina digital, Felipe respirava através da imagem da Cecília. O que, diga-se de passagem, o deixou muito mais simpático. A impressão de antipatia havia esmorecido. Felipe, na verdade, era bem parecido com a Cecília. Sempre articulando, sempre rindo, sempre argumentando, sempre sendo o Felipe. Apaixonei-me por aquelas duas figuras e prometi um reencontro, num tchau estranho, melancólico até: os dois pegando um ônibus para casa e eu impressionado com o fato de só os terem realmente conhecido no último dia da minha viagem. No dia seguinte, no caminho para o aeroporto, um trânsito violento começava a gorar a minha expectativa de voltar para Curitiba. Aquelas figuras maravilhosas povoavam a minha lembrança e me deixavam com a noção de que o Rio de Janeiro vale muita a pena. A praia, apesar de cinzenta, parecia-me também acenar. Dei tchau para tudo o que eu julgava carioca. O tema do meu réquiem tocava na minha mente em forma de verso: “A melhor coisa de Curitiba, é sentir saudades de Curitiba”.