.

segunda-feira, julho 02, 2012

O ritual e a sua legião de rituais.

Como disse a genial Juliana Galdino para mim logo na entrada do Club Noir, “o teatro é mais real do que a vida, você sabe disso, né?” A frase, com sua sonoridade incrível, pareceu me acompanhar durante toda a peça “as suplicantes”, tragédia de Ésquilo com direção de Roberto Alvim, que esteve em cartaz em São Paulo. Juliana me deu a pista que eu precisava: o “real” de fora do teatro – pelo menos naquele momento (com sua praticidade comesinha) - , na verdade, era a fachada de uma legião de rituais-mais-reais-do-que-a-vida colocados dentro da estrutura geométrica, própria de um ritual pagão, armada no palco. Mais do que mostrar que uma pessoa pode ter uma legião dentro de si, Alvim, nesta peça, nos mostra que um real pode ter uma legião de reais por dentro a comprometer a estruturação lógica de tempo e espaço, implicando/convidando o espectador a entrar numa zona de alta periculosidade “mais real do que a própria vida”. E como ele faz isto? Seria tolo e desumano tentar desvendar os mistérios que fazem de “as suplicantes” o espetáculo genial que é. Mas, alguns apontamentos estão atiçando os meus dedos nicotinados a dançar pelo teclado deste velho laptop (ainda mais agora que estou de volta a Curitiba). Alvim, junto com os atores, cria uma paleta de cores sonoras (falo isto da voz – a peça é feita em comunhão com o silêncio – momento sagrado de um ritual) que apontam sempre para um espaço do não-conhecido. Eu digo “apontam” justamente pelo fato de que o conhecido (que é tocado sutilmente por texturas vocais muito bem costuradas e pelo modo como o texto foi tratado) é o receptáculo necessário para a compreensão destes novos reais que a peça nos proporciona. Não esperem, aqui, a lógica da surpresa que, em muitos espetáculos, é a bússola reconfortante para a platéia. Em “as suplicantes” não há aquelas surpresas apatetadas típicas de um jogo infantil de esconde-esconde que muita gente adulta adora ver em teatro. Aqui, como num verdadeiro templo, temos a instauração completa de um novo território (neste caso, volto a dizer – um real contendo uma legião de reais). E isto não tem a ver com surpreender, mas sim com instaurar (neste sentido, a peça é muito mais um convite do que uma imposição hipnótica de comportamentos – neste sentido, também, a peça precisa mais do que nunca do público para “funcionar”). Os ruídos e tensões causadas pelo modo dos atores falarem o texto e, sobretudo, pelo modo como estas falas se chocam umas com as outras – às vezes repetidas em diferentes posições deste mapa existencial greco-noir - parece nos colocar sempre em uma nova perspectiva – como no lento movimento de um caleidoscópio. A legião de mulheres representadas pela excelente Paula Spinelli, nos parece, em determinado momento nos colocar frente a pulsões atávicas da nossa condição. E em outros nos posiciona bem no meio de uma selva escura de terras desconhecidas. O coro grego, então, ganha uma dimensão demoníaca. Pureza e castidade são deturpadas em função de uma nova lógica de funcionamento existencial – a lógica da multidão ordenada, ou melhor, desenhada. O tom etéreo evocado pelo ator Ricardo Grasson adquire, por exemplo, novas cores durante a peça. O significado das lágrimas é distorcido – um novo jeito de olhar o mundo nos é dado de presente. Por fim, o buraco negro. A sucção deste novo real mais-real-do-que-a-vida. O fluxo de subjetividades a nos sugar para outro universo. O portal muro branco buraco negro. Num só rosto de mulher. Somos tragados pelas infinitas suplicantes que existem naquele rosto vazado de negro. E algo no desenho abstrato da nossa própria vida parece mudar – definitivamente.

Dezoito Zero Um no Facebook

Arquivo do blog