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sexta-feira, abril 30, 2004

neblina

Vou mastigar esta casca de uva como quem mastiga pedras, meu bem. Hoje acordei com uma peça de mármore na circulação ao invés de sangue. Lembrei de quando o guarda-chuva quebrou na avenida da sua casa. O corpo não secava, escorria lembranças. Mas é por isto que recorto a minha cara destas fotos de inverno. Curitiba não dá tréguas: pede um abraço e um beijo no rosto. O que fazer destas pedras mal colocadas na calçada? Curitiba pede um tropeço, um caminho torto. E eu sigo ligando e desligando o interruptor da neblina na aurora. Deixei ligado pra você, meu bem.

quinta-feira, abril 29, 2004

da série "num quarto de hotel"

Esta peça de gesso secando por dentro
A carne em franco escurecer
Nesta coisa de acordar os cílios
Sento lentamente no caminho
Do sono
Fui dormir tarde
E já é tarde para enxaguar o olhar
Uma dose à um dia feliz

"(...)quando eu estiver velho, tarado e gagá,
Com um copo de cana eu vou lembrar
do seu gingado e os meus olhos vão brilhar.
Blues é assim, baby
Blues é assim(...)"

(cazuza)

Um brinde querida, pois hoje fui no nosso último lugar, com algumas mimosas guardadas no bolso e um certo lacrimejar no olho. Passei pela igrejinha da ordem, afungentei os pombos como quem assopra a brasa do cigarro para que a cinza se construa celeremente e caia mais rápido. Hoje esperei você de pé, como uma destas estátuas pichadas por aqueles que, não aguentando, falam, esperneiam. Hoje eu lembrei da sua família como quem lembra do quarto bagunçado, ao ver pela janela do avião os pingos luminosos a formarem a cidade de Curitiba. Hoje, querida, lembrei de você e não foi por acaso: armei um boteco em cada lado da sua vida. Um brinde, amor. Um brinde a sua vida.

quarta-feira, abril 28, 2004

Da série "num quarto de hotel"
I

Que ninguém olhe pra cá.
Aqui abraço o pó da neurose.
Assopro um trago no olho de quem vê
minha cara a afundar na água grossa
Da alaranjada casca da fruta cítrica (você se lembra?),
Ou no anoitecer da estrada de ferro
Em sua cor ao beijar a borda da lua.

segunda-feira, abril 26, 2004

Fluido

Da areia desta construção, respiro as ocasiões jogadas fora. Um pingo de solidão faz este ar, a pasta dura da alma, parecer cimento. O meu caminho é lento e, na estrada desta sonolência, a cidade é mais um camafeu esquecido no fundo do armário. As reminiscências do outro. As picuinhas do outro. Bebo neste copo vazio. Mas o que vale mesmo é o ato. O líquido pouco importa. Já faço parte do fluido pegajoso da sua alma, leitor.
Inéditos

do livro "um blues em curitiba"

IV

Nas veias do espaço
Escorro seus braços
No morno dos objetos
Um palmo de aflição
Seu rosto queima a matéria dos sistemas
Das mensagens implícitas do céu
Construo a sua forma com estrelas
E o véu da epiderme
Que da língua inflamava solidão,
Brota riscos de álcool
Na pele da retina
A droga destila pedaços de cores
Da íris
O paladar sufoca a respiração
Você surge em fragmentos de sabores novos
Acostumo as pernas a um novo caminho
Você esparrama suas regras pelo papel
E galáxias se formam de acordo com seu orgulho
E o copo de riso parece acabar
A todo nada-de-tocar
Volto aos pelos que rangem
A nota de um limite
Entre o céu e minha angústia
Sinto ela se livrando de seu resto
De seus olhos
O laranja das formas solares
a dar espaço a noite.


domingo, abril 25, 2004

Verdade de boteco

Um dia no boteco a gente se dá conta: nossos olhos olharam mais, nossos braços abriram mais e a boca secou as lembranças de outros casos. Quando a boca seca e os lábios polvilham a saliva de uma farofa espessa, surge um desejo de esconder a língua da sua verdade. Você não quer falar verdades, acha chato quem as admira. Mas aos poucos você deixa os sistemas do seu corpo o consumir...bem, controle sobre alguma coisa você nunca teve mesmo...talvez controle sobre a verdade, aquela implícita no sonho que teve antes de acordar. Você acorda a sua vida e deixa de cumprimentá-la. Você dorme na mesa do boteco e ninguém teve o interesse de acordá-lo. Até que por um momento a gente pensa: "talvez, se eu falasse a verdade". Você acorda e o sol acorda todas as verdades, que não serão faladas até que o vermelho das formas solares feche os olhos aos primeiros copos de cachaça da noite.

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